Escrever é mesmo terapêutico?
 



Dicas

Escrever é mesmo terapêutico?

Emilly Garcia


"As emoções reprimidas nunca morrem. São enterradas vivas e saem mais tarde da pior forma". A frase é de Sigmund Freud, pai da Psicanálise. Na mesma direção, na Psiconeuroimunologia, área multidisciplinar que estuda a relação entre as emoções e o sistema imunológico, estudos mostram a influência de fatores psíquicos no surgimento de doenças psicossomáticas.

Atento a isso, na década de 1980, o psicólogo norte-americano, James Pennebaker, conduziu um experimento com estudantes em que pedia para eles escreverem sobre seus sentimentos mais profundos e ocultos. Após analisar os dados obtidos, Pennebaker percebeu que os estudantes mais assíduos na tarefa eram os que menos apresentavam problemas de saúde e que lidavam melhor com seus traumas. Esse experimento serviu de base para o que depois chamou-se de "escrita expressiva".


Arte de @tarantadongkalbo

Falar sobre emoções complexas é uma tarefa bastante difícil. Por isso, escrever sobre elas pode ser uma alternativa, e até mesmo um complemento à psicoterapia. Escrita terapêutica, curativa, expressiva. Independentemente da nomenclatura, especialistas afirmam que escrever sobre as próprias emoções e somente para si, em diários ou cadernos, sem a preocupação com a gramática e o julgamento alheio, ajuda a organizar o pensamento, amplia a autopercepção, direciona ao autoconhecimento e possibilita novas perspectivas de causa e consequência sobre um determinado problema.

Indo além dos diários, há quem prefira compartilhar suas narrativas pessoais na internet, e ainda casos em que esse tipo de escrita acaba sendo transformado em livro. De um jeito ou de outro, o fato é que assim como a música e a pintura, a escrita também tem um efeito catártico. No livro "Cura pelas palavras", por exemplo, a autora indiana Rupi Kaur sugere uma série de exercícios de escrita, "pensados para ajudar a explorar traumas, corações partidos e amores".

Conceição Evaristo, ao falar sobre o conceito de "escrevivência", certa vez disse em uma entrevista que "ninguém chora diante de um dicionário e as palavras estão lá, arrumadas bonitinhas. Mas elas só ganham sentidos, elas só te tocam se você transformar em uma vivência possível, que você já observou, ou até em uma ficção".

Na Literatura, muitos são os poemas, contos, crônicas e narrativas ficcionais que tiveram como mote as emoções mais íntimas dos autores: memórias de infância, a perda de um filho, uma dor de cotovelo, episódios de depressão. Além disso, no universo acadêmico, Literatura e psique humana não raro são objetos de análise, seja no mapeamento do inconsciente coletivo nas obras literárias, seja na investigação dos efeitos terapêuticos que a escrita criativa possa vir a ter.



Janaína, Nanci e Anderson


Conversamos com três psicólogos do Curso de Formação de Escritores, que trouxeram seus conhecimentos e vivências profissionais para falar sobre esse assunto.

Janaína Steiger é escritora e poeta, psicóloga clínica e social, especialista em Saúde da Família e Comunidade. Busca em sua prática e estudos, a articulação entre psicologia, psicanálise, políticas públicas e arte. Atualmente, atua em consultório particular e no SUAS (Sistema Único de Assistência Social), e encaminha-se ao final do Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose.

S.P. Anderson (Anderson Siqueira Pereira) é escritor, Psicólogo Clínico pela abordagem Cognitivo Comportamental, doutor em Psicologia (UFRGS), autor de "O Zeitgeist" (2020) e "Sugar" (2021) e apresentador do podcast "Café com Psico", além de aluno egresso do Curso Livre de Formação de Escritores.

Nanci Takahashi Passoni é psicóloga formada pela UNESP, com pós-graduação em Administração de Recursos Humanos e diversos cursos de especialização em gente e gestão, área em que atuou por mais de trinta anos. Atualmente, dedica-se ao estudo da Escrita Criativa.


A escrita não substitui uma boa sessão de terapia, mas ela pode ser terapêutica?

S.P Anderson - Sim, a escrita pode ser extremamente terapêutica. É preciso entender que nem sempre nossos pensamentos seguem uma linha lógica na nossa cabeça, muitas vezes eles estão bagunçados e, por isso, encontrar formas de sair de determinadas situações fica difícil. Quando uma pessoa está sofrendo de um transtorno mental, este processo é ainda mais complexo, pois os transtornos como depressão e ansiedade têm a capacidade de mudar a forma como pensamos, polarizando o conteúdo dos pensamentos. Desta forma, a escrita pode ser uma forma de organizar os pensamentos de um jeito lógico, nos ajudando no raciocínio e na resolução de problemas.

Janaína Steiger - Como um "boa" psicóloga, te respondo: "depende". Gosto de partir sempre da ética do singular, isto é, acredito que a escrita pode ser terapêutica para algumas pessoas, assim como pode não ser para outras. E digo isso buscando fugir das generalizações ou orientações imperativas que podem contaminar, inclusive, a escrita, e assim, poder enfatizar os potenciais efeitos dela. Estes os quais sempre foram, pessoalmente, muito importantes para mim, e seguem reverberando na minha prática profissional, como psicóloga clínica e social.

Acredito que a escrita, quando situada a partir do desejo (e não da imposição: mais uma tarefa a ser cumprida, gerando cobrança e frustração); bem como quando consegue desprender-se do compromisso com a formalidade e rigidez da gramática, pode ter efeitos muito interessantes. Assim, pode-se, a partir da escrita, surpreender-se consigo, deixando-se falar (e ler) a partir da própria letra. Seja num estilo livre, em tom de diário, ou ainda por meio da ficção, que permite a quem escreve um distanciamento muitas vezes necessário para acercar-se de afetos pouco acessados, de uma outra forma, numa nova roupagem. Um efeito que a própria leitura permite, também, no encontro entre as experiências de quem lê e quem escreve. É a partir desse encontro que um livro se faz, que o efeito é produzido. Lembro do conceito de Conceição Evaristo de "escrevivências", que carrega em si a indissociabilidade entre ficção e realidade, bem como entre uma experiência individual e a de uma coletividade. Ela evidencia a potência da escrita de transmitir uma experiência coletiva num só eu-lírico, convocando a um "nós". No que tange à escrita de Conceição, esse coletivo compreende, sobretudo, as mulheres negras.

No meu trabalho na clínica com perspectiva psicanalítica, vejo que a escrita aparece ora como disparadora de questões endereçadas ao espaço de análise, ora como forma de transbordamento de pontos ali tocados, ora como um traço importante, dentre muitos, do sujeito escutado.

Nanci Passoni - Escrever sobre experiências dolorosas e traumáticas pode ser terapêutico, na medida em que a exteriorização (verbal ou escrita) pode fazer com que a pessoa perceba a situação de outra maneira, de um ponto de vista diferente e que lhe permita ressignificar o acontecido. O olhar abrandado contribui para que o trauma possa ser transformado em aprendizado, até para que não se repita a mesma dor. O recomendado é que a pessoa que está assim escrevendo seja acompanhada com apoio terapêutico, em situações traumáticas mais graves para superação mais amena e para que possa transmitir uma experiência positiva a partir dessa vivência.


Muito se fala em escrever sobre traumas, luto, angústias. Mas e quanto a escrever sobre experiências felizes, positivas?

S.P Anderson - Muitas pessoas podem achar bobo escrever sobre coisas boas, afinal essas coisas "já estão resolvidas", mas esse pode ser um exercício poderoso de bem-estar psicológico. O que acontece é que nosso cérebro tem uma tendência a focar nas coisas ruins, nos problemas a resolver e isso faz com que as coisas boas fiquem de lado, o que pode gerar uma sensação de que nada de bom acontece. Escrever sobre as coisas boas treina o cérebro a observar quando estas coisas acontecem e a dar valor a elas. Um exercício interessante nessa linha é o que chamamos de "Diário da Gratidão", onde precisamos escrever, diariamente, uma coisa boa que aconteceu no dia. Este é um exercício interessante que usamos na depressão, pois uma pessoa deprimida tem dificuldade de ver coisas boas no dia a dia e, ao ser obrigada a relatar sobre isso, começa a perceber estas pequenas coisas, melhorando assim seu humor.

Janaína Steiger - Em relação à escrita de experiências felizes e positivas, reitero o cuidado em relação às generalizações e imperativos, estes muito alinhados a uma "positividade tóxica", sobre a qual tem se falado muito, e que é mandatória, imposta e unívoca. Assim, acredito que escrever sobre experiências prazerosas pode ser bom, mas não como uma prática isolada, nem como obrigação, tampouco para todo mundo.

Nanci Passoni - As experiências felizes, acredito, inspiram a identificação do leitor para persistir e ser mais resiliente diante de dificuldades e objetivos que se assemelham aos relatados. Caso não sejam situações que provoquem a projeção do leitor, há que se tomar cuidado com a verossimilhança para que não sejam interpretadas como fantasias, somente. A linha é tênue e é muito difícil a previsão, como já afirmaram anteriormente, "a diferença entre o remédio e o veneno é a dose".


Há casos em que não seja recomendado escrever sobre determinadas experiências?

S.P Anderson - É importante entender que o cérebro não consegue diferenciar o que é real e o que é imaginário quando se fala de vivência emocional. Logo, mesmo que seja só um exercício de reescrever uma experiência, podemos estar nos colocando em um lugar vulnerável onde as memórias podem nos machucar novamente. Em caso de traumas graves (como abuso sexual, por exemplo), este tipo de vivência precisa ser acompanhado de um profissional que possa ajudar a pessoa a manejar as emoções que podem ser despertadas pela revivência das memórias.

Janaína Steiger - Assim, a escrita toca. E trago isso tomando como potencialidade, mas também como responsabilidade e risco. O risco de evidenciar "gatilhos" sem a possibilidade de oferecer o amparo e bordas necessários, sobretudo no que tange à escrita de experiências dolorosas e traumáticas. É bastante delicado - não basta escrever. É uma das ressalvas que trago, sobretudo quando se referem a práticas individuais, pontuais e/ou "milagrosas" (as quais o sistema neoliberal adora vender). Muitas vezes é necessário olhar e tocar as experiências traumáticas vivenciadas,
mas com cuidado, tempo e espaço - que não necessariamente será o de
psicoterapia ou análise.

Nanci Passoni - A abordagem de sintomas e posturas conflituosas de pessoas doentes psíquicas podem facilitar a identificação e projeção do que a própria pessoa sente e suas dificuldades de convivência, seja consigo mesma ou na sociedade. Fica a dica a indicação de seu fortalecimento interno com o autoconhecimento por meio de processo terapêutico.


Pensando na recepção do leitor, como você avalia o "encontro" das experiências de quem lê com as de quem escreve?

S.P Anderson - No geral, livros assim são bem recebidos e podem trazer vivências interessantes. Primeiro porque podem ajudar as pessoas em sofrimento a perceberem que não estão sozinhas em sua dor. Este sentimento de dor compartilhada pode ser bastante terapêutico, principalmente quando o livro consegue trazer estratégias positivas que a pessoa pode usar em sua vida. Além disso, quando um autor fala sobre sua dor, ele pode estar ajudando pessoas que não sofrem com algo parecido a olhar a sua volta, podendo perceber e ajudar essas pessoas.

Porém, devemos cuidar com certos tipos de conteúdos. Pessoas mais sensíveis podem reviver traumas ao lerem sobre o relato de outras pessoas e se vulnerabilizarem de uma forma negativa. Além disso, certas obras podem romantizar comportamentos de risco (como uso de drogas ou suicidio), transformando estes comportamentos como estratégias viáveis para resolução de problemas, então também cabe uma responsabilidade do autor em como abordar em sua obra a dor, de forma a criar um ambiente de superação e não de incentivo a comportamentos autodestrutivos.

Janaína Steiger - Enquanto psicóloga do setor público, a escrita já esteve compondo o meu fazer enquanto dispositivo complementar em diversas ocasiões, como intervenções com jovens em escolas, bem como projetos voltados à saúde do trabalhador. Em 2021, por exemplo, tive a oportunidade de facilitar por um ano, junto de duas colegas na época, a oficina de escrita realizada em uma Unidade de Saúde da Atenção Primária (o chamado "postinho"), onde fiz minha pós-graduação na modalidade Residência. Tratava-se de um grupo permanente e aberto, sem caráter terapêutico, propriamente dito, mas com nítidos e importantes efeitos para cada participante, de acordo com as suas singularidades. Não havia o rigor teórico ou qualquer objetivo técnico de "ensinar como se escreve", e dele participavam desde curiosas até licenciadas em Letras. Foi esta última, inclusive, que apontou, num dos últimos encontros que participei, a importância que o grupo teve para si no sentido de desapegar-se das regras, deixando fluir. Outra participante, por sua vez, trouxe o efeito de "sentir-se bem por poder encontrar e trocar com outras pessoas". Evidenciava-se, então, a potência do fazer em coletivo, do "escrever com". Não raro, ademais, a oficina era colocada no lugar de "respiro", pausa. Um alargamento do tempo. A escrita convoca a isso, a um outro tempo. Era o auge da pandemia, e o escrever junto era, também, uma forma de toque - tocar aos outros, tocar a si.

Nanci Passoni - O leitor pode se identificar ou não com a "escrita expressiva". Dependendo do nível de consciência e autopercepção, pode ser bastante positivo e até conduzir ao ressignificado da situação traumática vivenciada pelo leitor. Caso seja uma experiência muito dolorosa, pode negar a identificação e restringir-se à leitura do texto. Já pensei, num texto que escrevi, deixar linhas para que o leitor escreva sua vivência e exteriorize seus sentimentos/emoções, porém não é possível antever a validade e efetividade. Em síntese, a escrita, por ser arte, transcende a abordagem freudiana da luta entre o instinto de vida e instinto de morte e do conflito, isto é, aspectos positivos e negativos da busca do autoconhecimento, de superação e fortalecimento de si e das relações sociais e afetivas, seja pelo olhar do escritor ou pela identificação do leitor.

 

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